Calha do Corvo

segunda-feira, 7 de março de 2011

Costumes e hábitos tradicionais de Santo Antão


Antigamente no Corvo assim como em todas as localidades da ilha de Santo Antão, a população tinha como uso poupar as suas economias e guardar tudo quanto era possível e mais sagrado, para quando o emigrante vier de férias. Se compararmos essa atitude com os dias de hoje, constatamos que de facto isto não passava de uma grande asneira. Mas em fim era a tradição de uma cultura que espelha a morabeza e a cortesia do povo da ilha de Santo Antão existente ainda hoje e de que eu orgulho muito.
Dos mais simples objectos de uso diário como por exemplo talheres, chávenas de café, copos, pratos, toalhas de mesa, pano de cama, etc., etc., tudo era guardado para os emigrantes, visitantes ou para serem usados em ocasiões muito especiais, tais como as festas de Nª Sra. do Livramento, ou nos casamentos que na altura eram mais frequentes.
Enquanto isso nós que morávamos e vivíamos aí o tempo todo, tínhamos de consolar com os utensílios velhos e degradados, isto é, comer nos pratos de esmalte furados ou pratos de plástico que eram tortos e encolhidos de tanto receber papa quente, beber café em canecas de lata improvisado, panelas em estado de degradação, toalhas velhas e rasgadas, ao passo que no armário havia tudo novinho, bonitinho, cheirosinho mas era proibido tocar neles, serviam só para enfeitar a sala.
Nesses armários que eu referi, aí de um menino que atrevesse mexer, era vara ou cinto na hora e quanto mais se quebrasse alguma loiça, já nem imagino qual seria o castigo.
Até roupas e sapatos eram também guardados para o tal dia, o dia das ocasiões especiais que muitas vezes não passava de uma vez ao ano. Felizmente devido a grande religiosidade das pessoas todos os Domingos eram também considerados dias especiais e sagrados porque era o dia da Missa, e então nós poderíamos calçar um sapato aos Domingos. Mas o sapato mais utilizado naquela data era a famosa sandália de plástico, que mesmo assim era muito poupado e quando rebentava uma tira era derretido no lume com uma faca e colado de novo. Muita gente tinha suas sandálias já com as tiras todas praticamente coladas, as vezes usavam mesmo tiras de cores diferentes e davam o luxo de ir as festas dançar ou mesmo entrar na igreja com aqueles sapatos nos pés.
Em relação aos costumes e hábitos alimentares tradicionais daquela época, devo referir que uma das expressões mais populares em Santo Antão e no Corvo em particular, é o famoso dia de “matá tchuk” (dia da matança de porco).
O dia de “matá tchuk” era um dia de união da família, de muita alegria, muita comida e bebida, em fim uma autêntica festa. Tudo era preparado na véspera: as cordas de carrapato para pear o porco, as facas e os machados devidamente molados, recipiente para parar o sangue, palha seca para chamuscar, balança para pesar e vender carne, toucinho e banha, cafuca ou lanterna para iluminar porque tinha de ser de madrugada. Lembro-me que as crianças no máximo podiam segurar na cafuca, como eu por exemplo na altura, e esperar com muita ansiedade a hora que nos davam a bexiga do porco enchida de ar para jogar futebol com a garotada.
As mulheres responsabilizavam pela limpeza e lavagem das tripas, preparação dos chouriços, linguiças, e claro na preparação do prato tradicional do dia que era o guisado ou molho com variadíssimas espécies de verduras e hortaliças picadas pequenininhos e acompanhado de arroz.
Por tradição o dono do porco não podia ser ele próprio a matar, tinham de convidar uma pessoa (matador) fora da família que depois por mérito do seu trabalho levava o rabo do porco com bom pedaço de carne e toucinho. Falo aqui em mérito porque o matador tinha de ser especialista no assunto, habilidoso de modo que matasse o porco o mais rápido possível e evitando ruído. Havia matadores com pouca experiência e passavam a madrugada inteira e até amanhecer ainda sem matar o porco.
Lembro de um tio meu que uma vez foi convidado a matar um porco, depois de tanto apunhalar e esfaquear o porco não morria, passado um tempo o porco já tinha perdido muito sangue então parou quieto no chão, eles pensando que o porco tinha morrido desataram as cordas e colocaram-no para chamuscar. Para o espanto das pessoas o porco com lume nas costas levantou correndo, por sorte depois de muita correria conseguiram pega-lo mas o tio nesse dia só terminou de matar o porco com pedradas na cabeça.
Mas para não variar devo dizer também que em regra geral os porcos eram criados e engordados para os emigrantes ou ocasiões especiais, entretanto como os emigrantes só vinham de férias de tempo em tempo, assim dava para matar mais do que um porco. Neste sentido o porco contribuía de forma fundamental para a economia doméstica, porque com o dinheiro obtido na venda da carne e toucinho, as famílias passavam algum tempo na bonança e dava para arranjar logo de seguida um leitãozinho para criar e engordar de novo.
Com essa mesma finalidade também eram criados e guardados cabritos, cabras, galos, frangos, latas de ovos, garrafões de bom grogue, entre outros artigos alimentares. No Corvo como é uma zona rica em agricultura de regadio, lembro que costumavam guardar cachos de banana, canteiros de mandioca e de inhames, abóboras, tudo para os emigrantes.
Imagina, de tanta banana que tinha naquele tempo no vale do Corvo mas para uma criança comer uma bana maduro era coisa rara, mais frequente era comer bananas verde no tradicional caldo de peixe pobre, banana maduro essa era para os de fora. Frango agora nem falar! Era muito complicado e difícil comer carne de galinha, aliás devo dizer que naquela altura comer frango ou galinha era um luxo, possível somente pelo Natal, assim como beber sumo, vinho, aiiiii só em festas. Os pratos mais comuns naquela época eram o caldo de peixe pobre que já referi, papa de milho com leite e cachupa claro.
Ora, eu poderia escrever muito mais sobre esses antigos costumes e tradições do Corvo, mas como o texto já vai longo e dá cansaço ler, então outras recordações ficam para uma próxima oportunidade.